sexta-feira, julho 29, 2005


    O papel está hoje com uma abominável falta de imaginação.
    Continua apenas, olhando-me: vazio, mais quadrado do que nunca.

quarta-feira, julho 20, 2005

I

      I


      Escrevo diante da janela aberta.
      Minha caneta é cor das venezianas:
      Verde!... E que leves, lindas filigranas
      Desenha o sol na página deserta!
      Não sei que paisagista doidivanas
      Mistura os tons... acerta... desacerta...
      Sempre em busca de nova descoberta,
      Vai colorindo as horas quotidianas...
      Jogos da luz dançando na folhagem!
      Do que eu ia escrever até me esqueço...
      Pra que pensar? Também sou da paisagem...
      Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
      E me transmuto... iriso-me... estremeço...
      Nos leves dedos que me vão pintando!


      [in: A Rua dos Cataventos]

sexta-feira, julho 15, 2005

No ano passado...

Já repararam como é bom dizer "o ano passado"? É como quem já tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem...Tudo sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse "tudo" se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraodinária sensação de alívio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas. Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano passado deparei com um despacho da Associeted Press em que, depois de anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo à parte:

"Na Itália, quando soarem os sinos à meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos rachados".

Ótimo! O meu ímpeto, modesto mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela janela, tendo apenas no bolso, à guisa de explicação para as autoridades, um recorte do referido despacho. Mas seria levar muito longe uma simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque resido num andar térreo. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a Polícia, que só quer saber de coisas concretas. Metáforas são para aproveitar em versos...

Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado.
Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição - morte do ano velho e sua ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma vida nova. Por essas e por outras é que, nestas calçadas claras do ano bom:

Rechinam teus sapatos rua em fora.
Tão leve estou que já nem sombra tenho
E há tantos anos de tão longe venho
Que nem me lembro de mais nada agora!

Tinha um surrão todo de penas cheio
Um peso enorme para carregar!
Porém as penas, quando o vento veio,
Penas que eram... esvoaçaram no ar...

Todo de Deus me iluminei então,
Que os Doutores Sutis se escandalizem:
"Como é possível sem doutrinação?!"

Mas entendem-me o Céu e as criancinhas.
E ao ver-me assim, num poste as andorinhas:
"Olha! É o Idiota desta Aldeia!" dizem...
[Mario Quintana: Porta Giratória. São Paulo, Ed Globo, 3 edição, 1997]

...

quarta-feira, julho 13, 2005

A Coisa

A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.

sexta-feira, julho 01, 2005

Os antigos retratos de parede



      Os antigos retratos de parede
      Não conseguem ficar longo tempo abstratos.
      Às vezes os seus olhos te fixam, obstinados
      Porque eles nunca se desumanizaram de todo.
      Jamais te voltas para trás de repente.
      Não, não olhes agora!
      O remédio é cantares cantigas loucas e sem fim...
      Sem fim e sem sentido.
      Dessas que a gente inventava para enganar a
      Solidão dos caminhos sem lua.

      [in: Esconderijos do Tempo]