sexta-feira, julho 28, 2006

O dia abriu seu pára-sol bordado

XII

Para Erico Verissimo

O dia abriu seu pára-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.
Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua - a Lua! - em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...
Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!
E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranqüila de um açude...


[Mario Quintana; A Rua dos Cataventos]

terça-feira, julho 25, 2006

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...

domingo, julho 23, 2006

Mentiras

Lili vive no mundo do faz de conta...
Faz de conta que isto é um avião.
Zzzzzuuu...
Depois aterrizou em um piquê e virou um trem.
Tuc tuc tuc tuc...
Entrou pelo túnel, chispando.
Mas debaixo da mesa havia bandidos.
Pum! Pum! Pum!
O trem descarrilou.
E o mocinho?
Onde é que está o mocinho?
Meu Deus! onde é que está o mocinho?!
No auge da confusão, levaram Lili para cama, à força.
E o trem ficou tristemente derribado no chão,
Fazendo de conta que era mesmo uma lata de sardinha.



[Mario Quintana; Sapato Florido, 1948]

quarta-feira, julho 19, 2006

O cágado

Morava no fundo do poço.
E nunca saiu do poço.


Costumava tormar sol numa saliência da parede,
quando a água chegava até ali.
Nas raras vezes que isto sucedia, ficávamos a olhá-lo
impressionados, como se estivéssemos diante do
Homen da Máscara de Ferro.


Que vida!
Era o único bicho da casa que não sabia os nossos
nomes, nem das mudanças de cozinheiras, nem o
dia dos anos de Lili.


Não sabia nem queria saber.


[Mario Quintana; Sapato Florido, 1948]

sábado, julho 15, 2006

Dos chatos...

O maior chato é o chato perguntativo. Prefiro o chato discursivo
ou narrativo, que se pode ouvir pensando noutra coisa...
Me lembro que fiz um soneto inteiro - bem certinho, bem clássico e tudo - durante o assalto ao Quarto do Sétimo, isto é, quando um veterano de 30 me contava mais uma vez a sua participação nas glórias e perigos daquela investida.

As velhotas que nos contam seus achaques também são de grande inspiração poética.

Mas que fazer contra a amabilidade agressiva do chato solícito?
Aquele que insiste em pagar nossa passagem, nosso cafezinho, ou
quer levar-nos à força para um drinque, ou faz questão fechada de
nos emprestar um livro que não temos a mínima vontade de abrir...

Ah! ia-me esquecendo dos proselitistas de todas as religiões. Os
proselitistas amadores, que são os piores. Quanto aos sacerdotes
que conheço, registre-se em seu louvor que eles sempre me falam
de outras coisas. Ou me julgam um caso perdido ou um caso
garantido... Bem, qualquer que seja o caso, deixam-me em paz.

O que pode acontecer de mais chato no mundo é o chato que
se chateia a si mesmo, o autochato.

Para essa extrema contingência, descobri em tempo que a
última solução não é o suicídio. É escrever, desabafar para cima do
leitor, o qual, se me leu até aqui, a culpa é toda dele.

Há gente para tudo...


[Mario Quintana]

quarta-feira, julho 12, 2006

Indivisíveis

O meu primeiro amor e eu sentávamos numa pedra
Que havia num terreno baldio entre as nossas casas.
Falávamos de coisas bobas,
Isto é, que a gente achava bobas
Como qualquer troca de confidências entre crianças de cinco anos.
Crianças...
Parecia que entre um e outro nem havia ainda separação de sexos
A não ser o azul imenso dos olhos dela,
Olhos que eu não encontrava em ninguém mais,
Nem no cachorro e no gato da casa,
Que tinham apenas a mesma fidelidade sem compromisso
E a mesma animal - ou celestial - inocência,
Porque o azul dos olhos dela tornava mais azul o céu:
Não, não importava as coisas bobas que diséssemos.
Éramos um desejo de estar perto, tão perto
Que não havia ali apenas duas encantadas criaturas
Mas um único amor sentado sobre uma tosca pedra,
Enquanto a gente grande passava, caçoava, ria-se, não sabia
Que eles levariam procurando uma coisa assim por toda a sua vida...

terça-feira, julho 11, 2006

A verdadeira arte de viajar...

A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do
mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!

Desconfiança

Mas quem sabe se o Diabo não será o Mister Hyde de Deus?

[Mario Quintana; Da preguiça como método de trabalho, 1987]