quinta-feira, setembro 20, 2007

Floresta

Dédalo de dedos.
Lanterninhas súbitas.
Escutam as orelhas-de-pau. Ssssio...
O gigante deitado
Se virou pro outro lado.
A velha Carabô
Parou de pentear os cabelos.
É o Vencido... são as duas mãos e a cabeça do Vencido que se arrastam.
Que se arrastam penosamente para o poço da Lua,
Para o frescor da Lua, para o leite da Lua, para a lua da Lua!
(Filha, onde teria ficado o resto do corpo?)






[Mario Quintana; Aprendiz de Feiticeiro, 1950]

terça-feira, junho 12, 2007

O Poema do Amigo


Estranhamente esverdeado e fosfóreo,
Que de vezes já o encontrei, em escusos bares submarinos,
O meu calado cúmplice!


Teríamos assassinado juntos a mesma datilógrafa?
Encerráramos um anjo do Senhor nalgum escuro calabouço?


Éramos necrófilos
Ou poetas?
E aquele segredo sentava-se ali entre nós todo o tempo,
Como um convidado de máscara.


E nós bebíamos lentamente a ver se recordávamos...
E através das vidraças olhávamos os peixes maravilhosos e terríveis cujas complicadas formas eram tão difíceis de
****[compreender como os nomes com que os catalogara Marcus Gregorovius na sua monumental Fauna Abyssalis.




[Mario Quintana; Aprendiz de Feiticeiro, 1950]

quinta-feira, maio 03, 2007

Função

Varri-me como uma pista.
Frescor de adro, pureza um pouco triste
De página em branco... Mas um bando
De moças enche o recinto de pestanas.
Mas entram inquietos pôneis.
Ridículos.
Ergo os braços, escorre-me o riso pintado
E uma pura pura lágrima
Que estoura como um balão.


[Mario Quintana; Aprendiz de Feiticeiro, 1950]

terça-feira, abril 24, 2007

Mudança de temperatura

Nos fios telegráficos pousaram uma, duas,
três, quatro andorinhas.
Olham de um lado e outro... Irão partir?
Sobre as cercas rasas do arrebalde, os
girassóis espiam como girafas...


[Mario Quintana, Sapato Florido, 1948]



.

domingo, abril 15, 2007

Canção para uma valsa lenta

Minha vida não foi um romance...
Nunca tive até hoje um segredo.
Se me amas, não digas, que morro
De surpresa... de encanto... de medo...

Minha vida não foi um romance...
Minha vida passou por passar.
Se não amas, não finjas, que vivo
Esperando um amor para amar.

Minha vida não foi um romance...
Pobre vida... passou sem enredo...
Glória a ti que me enches a vida
De surpresa, de encanto, de medo!

Minha vida não foi um romance...
Ai de mim... Já se ia acabar!
Pobre vida que toda depende
De um sorriso... de um gesto... um olhar...



[Mario Quintana, Canções, 1946]





.

terça-feira, abril 03, 2007

Poeminho do Contra


Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!


[Mario Quintana, Prosa e Verso, 1978]










.

Caminho

Era um caminho que de tão velho, minha filha,
já nem mais sabia aonde ia...
Era um caminho
velhinho,
perdido...
Não havia traços
de passos no dia
em que por acaso o descobri:
pedras e urzes iam cobrindo tudo.
O caminho agonizava, morria
sozinho...
Eu vi...
Porque são os passos que fazem os caminhos!

quarta-feira, março 07, 2007

O Mapa

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(É nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...


[Mario Quintana, Apontamentos de História Sobrenatural, 1976]




.

sexta-feira, março 02, 2007

A menina


Ao longo dos muros da morte
Corre a menina com o arco.
O vento agita-lhe a saia florida
E a terra negra nem lhe imprime o rastro...

[Mario Quintana; Aprendiz de Feiticeiro, 1950]





.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

O Cais


Naquele nevoeiro
Profundo profundo...
Amigo ou amiga,
Quem é que me espera?

Quem é que me espera,
Que ainda me ama,
Parado na beira
Do cais do Outro Mundo?

Amigo ou amiga
Que olhe tão fundo
Tão fundo em meus olhos
E nada me diga...

Que rosto esquecido...
ou radiante face
Puro sorriso
De algum novo amor?!


[Mario Quintana; Aprendiz de Feiticeiro, 1950]





.

sábado, fevereiro 03, 2007

Boca da Noite

No espelho roto das poças dágua

O céu entristece...

Jesus Cristo encontrou o Menino Jesus.

Houve uma leve hesitação no ar...

Hove, de fato, qualquer cousa no ar...

Meu amigo morto me pediu um cigarro.

Que seria que aconteceu?

Todas as vitrinas de repente iluminaram-se...

E há uma estrela morta em cada poça dágua...



[Mario Quintana; Aprendiz de Feiticeiro, 1950]




.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Depois

Nem a coluna truncada:
Vento.
Vento escorrendo cores.
Cor dos poentes nas vidraças.
Cor das tristes madrugadas.
Cor da boca...
Cor das tranças...
Ah,
Das tranças avoando loucas
Sob sonoras arcadas...
Cor dos olhos...
Cor das saias
Rodadas...
E a concha branca da orelha
Na imensa praia
Do tempo.



[Mario Quintana; Aprendiz de Feiticeiro, 1950]




.

domingo, janeiro 21, 2007

Os fantasmas do passado


-E não te lembras daquela vez que ...?
Faço que me lembro.
Rio. Solto saudosos suspiros e faço exclamação de puro gozo.


Oh! monstruosa e implacável memória a dos nossos
companheiro de infância ...


E depois, como estão envelhecidos, os pobres diabos !
É o que os torna ainda mais antipáticos.



[Mario Quintana; Sapato Florido, 1948]




.